Sobre sentir raiva de gente rica
Ler Édouard Louis me permitiu assumir: eu sinto raiva de quem sempre teve tudo.
Eu consigo te dizer quando foi a primeira vez que eu senti raiva de uma pessoa rica. Eu tinha 15 anos. Nessa época, eu trabalhava como babá de uma criança de 1 ano, filha de um casal abastado que vivia em um condomínio de luxo de Araçatuba. Um dia, eles foram jantar com um casal de amigos e sua filha, que tinha a minha idade. Acompanhei eles na posição de babá, me sentando à mesa, ainda que vestida de branco e 100% à disposição da pequena patroa. Lembro até hoje a roupa que eu usava: uma blusa da minha mãe, de tiras grossas e um aplique bordado, com uma calça de jeans clara. Era a primeira vez que ia nesse restaurante (que não era refinado nem nada, mas ainda assim inacessível para mim e minha família), e por ser um lugar famoso na cidade, estava um pouco nervosa por estar lá à trabalho. Enquanto eu servia a bebê e beliscava algumas coisas, os pais da garota de 15 anos começaram o seguinte diálogo, alterado pela névoa do tempo e pela licença poética da autoficção:
— A Camila está brava com a gente, Jucão! - começou o pai, enquanto bebericava sua cerveja com um grosso colarinho - Ela vai pra Disney no mês que vem, mas não está feliz!
Camila, a menina, rolou os olhos. Também me lembro da roupa que ela usava: uma camisetinha branca da Colcci, All Star branco de couro, calça jeans da Damyller e vários acessórios da moda, como cinto de rebite e pulseiras de bolinhas.
— Eu estou feliz… - ela resmungou, mexendo no seu prato de comida - Mas é que… - começou a justificar, quando a mãe interrompeu.
— Ela quer trazer calças da Diesel. E não apenas uma, mas três! Me fala, pra quê tanta calça? - a mãe falou rindo, contando o suposto absurdo para sua comadre (minha patroa, no caso).
— Virou uma centopeia e a gente não ficou sabendo! — brincou o pai, fazendo a piada para o outro homem, que também riu.
— Mas todo mundo vai comprar pelo menos três! É meio que o motivo da viagem… - a menina tentava justificar, enquanto os ricos riam à mesa.
— Uma está mais que o suficiente. Já viu o preço daquelas calças? - o pai se virou para o compadre - Se fosse meu pai, ele me daria a viagem e o dinheiro para um hot dog e olhe lá!
— Faz assim… Maio é seu aniversário, não é? Então eu te dou uma calça mais! De 1 a 3, 2 é um ótimo número! - disse a minha patroa, fazendo um carinho na mão da menina. Ela sorriu satisfeita e o assunto voltou a ser um burburinho inaudível devido o zumbido da minha cabeça porque meu corpo foi tomado por um calor que subiu até meus olhos, que quando menos percebi, ardiam com lágrimas que não deveriam estar lá.
Eu senti raiva de todas aquelas pessoas, até mesmo da menininha de 1 ano que estava sob meus cuidados. Mas mais que raiva, eu senti uma tristeza profunda, como se o universo inteiro tivesse decidido me humilhar e fazer eu me lembrar do meu lugar e do espaço que eu realmente ocupava no mundo. Ver aquela garota da minha idade, usando roupas incríveis, organizando sua primeira viagem dos sonhos, estudando no melhor colégio da cidade, sentada com seus pais numa quarta-feira qualquer e comendo no restaurante mais famoso da cidade, triste, reclamando por não poder trazer três calças da Diesel, me rasgou a alma de um jeito que eu nunca havia sentido antes - e olha que, aos 15, eu já tinha passado por uns bocados.
Ali eu tive um vislumbre de uma vida que eu poderia viver em algum universo paralelo, mas que naquela realidade, era o extremo oposto do que eu experienciava. Ali, eu era uma empregada, que mal tinha roupas para desempenhar o serviço para o qual foi contratada. Por mais sonhos que eu tivesse, eu tive que abdicar de um curso gratuito de francês para conseguir esse emprego porque quando você é pobre, você precisa ter prioriedades - e ajudar minha família com uma das contas da casa, além de ter dinheiro para minhas próprias coisas era mais importante do que aprender uma nova língua - e eu aprendi isso desde muito cedo. Algumas pessoas viajam para a Disney aos 15 anos. Outras trabalhavam de babá.
O jantar acabou, voltamos para a casa dos patrões, ganhei um dinheirinho extra pelas horas excedidas, peguei minha bicicleta roxa e voltei pra casa, pensando na noite. Cheguei e minha mãe estava vendo a novela, com a refeição requentada no microondas. Minha irmã fazia alguma lição da escola, meu pai cochilava no sofá. Quando minha mãe perguntou como foi meu dia e eu respondi que havia ido ao Bola 7, ela me disse, feliz:
— Ai que delícia! O bom de você trabalhar com essas pessoas é que você vai conhecer lugares gostosos!
Mais uma vez, aquilo me cortou por dentro.
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Desde então esse sentimento não me abandonou, por mais que ele fique sob uma camada de outras coisas. Em quase 20 anos, minha vida mudou muito: me formei na faculdade, me mudei me para São Paulo, consegui bons empregos e, aos poucos, fui ascendendo profissionalmente até ganhar bons salários. Consegui ajudar minha família muitas vezes e de diferentes formas, mas ainda assim, eu me sentia culpada por viver coisas que eles não poderiam. Falei muito disso na terapia: que sentia uma dor física toda vez que vivia algo incrível porque minha família não poderia experienciar aquilo também. Mais uma vez me senti diante de uma injustiça ridícula: por que eu? Porque eu consegui e eles não? Em seu livro Mudar: Método, Édouard Louis diz que “a filósofa Eve Kosofsky Sedgwick fala sobre a energia transformadora inesgotável que infâncias humilhadas podem produzir". Me pergunto: será que a minha mudança veio da humilhação que senti aos 15 anos, enquanto usava uma blusa da minha mãe? Será que foi justamente essa raiva que fez eu me deslocar de classe social?
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Entender a injustiça social não a torna mais fácil de ser digerida. Ainda me revolta, mesmo que essa raiva dure apenas um segundo. Não é coincidência que as pessoas mais influentes do meu Instagram se conheçam desde a época da escola. Não é por acaso que as mulheres da minha idade, que são empreendedoras de sucesso, tenham estudado em colégios paulistanos cuja mensalidade custa no mínimo 5 mil reais. O sucesso dessas pessoas não veio só do trabalho duro, ainda que elas sejam sim talentosas, esforçadas e competentes. Veio com o investimento familiar. Com a boa educação. Com o contato com outras pessoas influentes. Com a riqueza cultural adquirida com as inúmeras viagens. Veio com o acesso precoce ao melhor do mundo. Veio com livros, filmes, espaços, cheiros, referências que sempre fizeram parte do dia a dia dessas pessoas, mas que para mim teve que ser adquirido tarde e a duras penas. Saber disso, desses degraus que as colocaram em um patamar de possibilidades, me revolta a ponto de não conseguir atribuir mérito ao que elas fizeram porque, pra mim, elas não fizeram mais que obrigação. Não faz sentido, eu sei. Mas se nossos sentimentos fossem racionais eles teriam outro nome.
Quando respiro fundo e guardo meu trauma de volta na caixa, consigo reconhecer, sim, a competência e o talento dessas pessoas. Mas esse reconhecimento nunca vem sozinho. E isso de certo modo me preocupa porque minha filha vive nesse mundo de possibilidades, de referências, de acessos. Com 2 anos a Maria Clara já viajou mais do que eu tinha viajado a vida inteira até os 27 anos. Ela já tem mais livros do que eu tive até os 25. Ela come sushi, blueberry, framboesa, pasta de amendoim e salmão recorrentemente — coisas que eu só fui experimentar depois de adulta. Ela já sabe quem é Georgia O'Keeffe, Simone de Beauvoir, Frida Kahlo. Ela já fala dois idiomas. Minha filha, provavelmente, será uma dessas pessoas cujo sucesso me incomoda porque tiveram todas as ferramentas para tal, então, como lidar com isso? Será que vou desvalidar minha criança? Será que eu vou exigir que ela tenha sucesso por conta dos privilégios que teve na vida? Será que vou deixá-la mimada, uma vez que quero que ela tenha absolutamente todas as coisas que eu quis ter e não pude? Não sei. Faço terapia para descobrir um jeito que eu não contamine a vivência da minha filha com a minha. Ela não tem e nem nunca terá culpa das coisas que eu não tive. Nem ela e nem ninguém.
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Ser um desertor da própria classe é como usar um sapato de um número menor. Se você forçar, entra, mas não vai ser confortável nunca. Eu forcei. Me coloquei aqui na marra, mas encaixar, mesmo, eu não me encaixo. Mas aprendi a andar assim.
amiga, SIM. é óbvio que tem talento, trabalho duro e dedicação - mas tem muita sorte e mais privilégio ainda. quanta gente talentosa, trabalhadora e dedicada ganhando um salário mínimo existe? eu sei que posso ser um poster da meritocracia (kk câncer), mas eu só consigo pensar: como eu tive sorte de ter pais formados na faculdade, que me deram colégio particular, que tinham um cuidado absurdo quando eu tava no hospital... ter pais que se formaram (avós que se formaram nem se fala) já é um puta privilégio. imagina ter viajado de avião antes de fazer 10, 15, 18? sair do país antes dos 30? conhecer as pessoas certas desde... sempre? eu super entendo seu vórtex.
me identifiquei demais com seu texto! ontem mesmo tive uma conversa com minha (única) amiga de ensino médio sobre como a gente se sentia culpada em gastar dinheiro com nós mesmas, porque sempre fomos criadas com pouco, com pais que não podiam nos mimar com presentes, e agora que temos condição financeira, ainda não conseguimos enxergar que podemos sim nos agradar e acabamos se sentindo culpadas por ter lazer, comprar coisas que queremos, gastar com quem gostamos. sempre parece que aquilo "não é pra nós"...