Sobre ser latina e viver o realismo mágico
Como explicar para um gringo que meu avô curou a bronquite do meu primo apenas usando suas unhas, alguns de seus cílios e uma latinha de manteiga?
Quando criança, sofria muito com bronquite. Ficava com falta de ar, meu pulmão chiava e até internada com insuficiência respiratória eu já fui. O inverno era um período terrível para minha mãe, que sabia que passaria noites em claro com meu peito barulhento. Meu avô paterno, diante de todo o sofrimento da ex-nora, perguntou: “Posso fazer a simpatia que fiz no Paulinho?”. Minha mãe prontamente aceitou. “Então tá. Quando for lua crescente, eu volto aqui e a gente faz!”.
Chegou a tal lua crescente e, com ela, meu avô. Cortou as unhas das minhas duas mãos, puxou um punhadinho dos meus cílios (ou foram das sobrancelhas? Prefiro acreditar que foram as sobrancelhas, embora tenha quase certeza de que foram os cílios), rezou alguma coisa e finalizou: “Agora, tem que comer essa manteiga por 30 dias", disse mostrando um potinho de manteiga Aviação. A orientação ficou meio vaga e nem eu nem minha mãe perguntamos sobre as letras miúdas: Mas tem que comer como? Pura, na colher? Pode colocar no pão? E na bolacha Maizena? Dá pra usar no ovo mexido? Acabou que entendemos que era pra comer pura. 30 dias comendo uma colherinha de manteiga para finalizar a simpatia.
Até hoje eu tenho um pouco de ranço de manteiga. Se for manteiga demais em qualquer coisa (pão, bolacha Maizena, ovo mexido…) eu me sinto embrulhada porque me lembro dos tempos em que manhã após manhã, minha mãe me chamava para comer a tal colherinha de manteiga na frente da geladeira. Fomos bem na primeira semana. Na segunda, porém, minha mãe confiou em mim para continuar com a programação e é óbvio que fui deixando, dia após dia, de comer a supracitada. Chegou a próxima lua crescente. Meu avô voltou pra pegar a latinha da manteiga e se surpreendeu quando viu que ela ainda estava na metade. “Depois, não adianta reclamar…”, ele disse sério. Para mim e para minha mãe.
Aparentemente, meu primo, o Paulinho, teve mesmo sua bronquite curada pelo meu avô e eu só não tive a mesma sorte porque me faltou disciplina. Apesar disso, pude experienciar, sim, um pouco desse curandeirismo do meu avô: uma vez, quando apareceu um furúculo na minha perna, ele pegou sua aliança (que ainda usava, mesmo viúvo há 18 anos), “circulou” a ferida, e fez uma oração. Misteriosamente, a bolinha nojenta sumiu no dia seguinte. Não tomei remédio, não espremi, não fiz nada. Ela simplesmente sumiu. Foi meu avô.
No ano passado, fiquei um pouco obcecada pelo conceito de realismo mágico, principalmente depois de ter lido Isabel Allende, Gabriel García Márquez e Socorro Acioli (nessa ordem). Aqui, da outra ponta da América, pude entender que tudo o que li nos livros, bem como as coisas que vivi na minha infância, mostra que esse movimento artístico nada mais é que o nosso mais puro dia a dia.
Não foram poucas as vezes em que me disseram para colocar uma fitinha vermelha no braço da minha filha “pra ela não pegar quebrante"; ou que me advertiram a nunca jogar a água da banheira de uma vez só, no quintal, porque “dava diarreia na neném". Foram incontáveis as vezes em que minha mãe colocou rodelas de batatas na minha cabeça, em crises de enxaqueca, e se admirou com elas ficando pretas. “Olha só! Chupou toda a sua dor!", dizia.
Como imigrante e uma mulher que vai ficando cada vez mais cética com o passar dos dias, tenho medo de que essa faísca de poesia se perca em mim. Que o cinismo gélido mine a beleza que nós, dos trópicos, enxergamos mesmo nos momentos mais obscuros. Na dor, principalmente. Somos pessoas forjadas pelo sofrimento, aprendemos na raça a colocar poesia no mais duro dos dias. É o sol, que é tirado da cabeça com um copo de água e um paninho. São as batatas que absorvem a dor e ficam manchadas por senti-la. É a água docinha que não só acalma, mas sossega o coração. A espada de São Jorge na porta de casa, que barra a inveja. A alfazema, que afasta coisa ruim e faz o bebê dormir melhor. Uma sabedoria ancestral que não é explicada, mas sentida no nosso âmago. Pura magia.
Apesar da minha mãe também ter me passado bastante desses conhecimentos que não são ensinados, foi com o vô que aprendi que só nós temos esse jeito de não só cuidar do que dói, mas de fazer arte até com o que machuca.
Deve ser triste viver em um mundo só com realismo, né?
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(Dedico essa edição ao vô, que faria 92 anos hoje)
Que coisa mais linda de ler! Me lembrei da minha bisa, minha vó e minha mãe, descascando batata para colocar em meus olhos enquanto tive crises de enxaqueca na infância (e no quanto esse carinho me curou). Nossa história latina se desenrola em realismos mágicos, simpatias e muito bem querer.
ah mas tá explicado, o seu avô é o próprio gabriel garcia marquez