Sobre a vontade de desaparecer da internet
Tetralogia napolitana, sair do Twitter e querer ser lida online
Para ler ouvindo: How To Disappear Completely - Radiohead
A aclamada tetralogia napolitana da Elena Ferrante começa com uma ligação desesperada de Rino: a mãe dele tinha desaparecido. Essa palavra, desaparecido, não foi usada por acaso: Lila, a mãe, cortou seu rosto das fotos em que estava. Sumiu com suas roupas, sapatos, cartas e outros resquícios que mostravam sua história pregressa. Lenu, a narradora do livro e melhor amiga da personagem, explica: [Lila] jamais pensou em suicídio, “seu objetivo sempre foi outro: queria volatilizar-se, queria dissipar-se em cada célula, e que ninguém encontrasse o menor vestígio seu.”
Há uns meses eu vi em algum lugar da internet1 que mulheres, conforme vão passando dos 30, postam menos fotos de si mesmas. Vejo mães falando a mesma coisa (“depois que o bebê nasceu, nunca mais tirei uma selfie") e são vários os lamentos sobre a falta de registro desses tempos. Eu vejo diariamente os meus “Neste Dia” do Instagram e vejo que conforme os anos avançam, menos fotos de mim mesma eu posto. E menos eu quero fazer isso.
No início do último livro da série, o História da Menina Perdida, a autora também se pergunta: “aceitar que ser adulto é parar de se mostrar, é aprender a se esconder até se dissipar?” e desde então eu me pego pensando em tudo o que permeia a ideia de desaparecer. Mas no meu caso, no que tange a presença online.
Hoje, eu não suporto mais viver essa dupla existência que mantemos com as redes sociais. Eu não aguento mais ter que performar alguém online quando a minha existência fora da internet já me consome tanto. Venho percebendo esse movimento há um tempo, mas não sei precisar quando foi que isso começou. Foi quando fiz 30 anos? Foi quando engravidei? Foi depois que Maria apareceu? Foi quando tive uma crise depressiva em 2019? Foi na pandemia? Eu não tenho a menor ideia. Só sei que aos poucos a minha imagem na internet começou a me incomodar. Dia após dia, me vem uma vontade de desaparecer, apagar o máximo dos meus registros, sumir porque tudo me incomoda.
Me incomodo com as minhas selfies, meus textos, meu feed. Me incomodo com meus posts, com minhas obrigações e com as coisas que deveria querer — mais seguidores, mais curtidas, mais frequência. Me incomodo profundamente com as pessoas que jogam esse jogo — por vê-las vendidas e por enxergar nelas um constante lembrete de que eu deveria estar fazendo mesmo. Me incomoda precisar ser vista para poder alcançar as pessoas com as minhas palavras e me incomoda ainda mais que isso seja literal.
Eu preciso ser vista em um lugar de onde eu só queria desaparecer.
Desde que li a tetralogia, estou com várias feridas abertas por aqui. São vários os questionamentos e e eles estão em diversos âmbitos da minha vida. Quero escrever sobre todos porque é assim que eu cicatrizo o que ficou aberto. O sumiço da Lila, que já não se enxergava e por isso decidiu desaparecer, foi uma das coisas mais doloridas e corajosas que já li na vida porque ela não sumiu, ela desapareceu e a diferença entre esses (quase) sinônimos está na decisão de fazê-lo. Ter decidido desaparecer foi uma forma de recuperar o controle de uma vida desgovernada. Em decorrência de seus traumas, de uma existência pesada e cheia de sofrimento, em algum momento ela decidiu desaparecer porque deixar de existir metaforicamente - e portanto, não ter nenhum papel a cumprir na sociedade, nem o de mãe, nem o de profissional, esposa, mulher, ativista, nada - seria o mais próximo que ela teria de uma existência plena. E então, me veio o grande questionamento que originou esse texto:
E se eu pudesse desaparecer [das redes sociais] hoje? O que de mim existiria?
Demorei mais tempo do que gostaria de assumir para entender a resposta: todo o resto. Eu continuaria escrevendo, continuaria tendo meu trabalho no mundo. Continuaria tendo minha família, viajando, tentando equilibrar meus pratinhos. Continuaria gostando de comprar roupas, de me olhar no espelho e me sentir bonita, de fazer exercício apenas para me sentir bem. Ficaria todo o resto, então, por que? Pra quê?2
*
Ao mesmo tempo em que penso e sinto tudo isso, eu sigo escrevendo por aqui. Estou estruturando conteúdos e quero alcançar mais pessoas, ser mais lida, chegar em ainda mais gente. É quase um conflito, mas decidi que continuar existindo online não significa ter que me render a um modelo que eu não acredito e que não faz sentido pra mim. Ler Ferrante me deixou claro que é possível, sim, ganhar o mundo sem depender do seu rosto. E essa talvez tenha sido a coisa mais inspiradora com a qual me deparei nos últimos anos.
E de você? O que fica quando sai da internet?
Eu estou…
Lendo: Eu ainda vou escrever muito sobre a Tetralogia Napolitana (existem literalmente 5 textos começados aqui nos rascunhos, cada um sobre uma abertura diferente causada pela série), então acho importante contar que eu li os quatro livros da série em um único mês de dezembro, logo, não seria nenhuma surpresa para vocês saberem que eu fiquei obcecada e, também, numa ressaca literária complicada.
Li alguns curtinhos na sequência (dois da Annie Ernaux e um do Jon Fosse, que odiei), mas nada que realmente tivesse me pegado, até começar A Casa dos Espíritos, da Isabel Allende. Isabel está na minha lista há séculos e nunca li nada dela, então, fui direto pela Casa - referenciada várias vezes em Jane The Virgin - e foi a melhor escolha. Fui totalmente absorvida pela história e estou lendo com afinco. Além dele, comecei a ler Escute as Feras, que também estou adorando. Felizmente, 2024 começou com ótimas escolhas literárias.
Antes de sair, os recados finais!
🌅 O livro novo vem aí!
Na próxima edição, falarei sobre o livro novo, trarei datas e compartilharei com vocês a capa (e muito mais) sobre esses textos desengavetados. Mal posso esperar! <3
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✨ E como essa foi nossa primeira newsletter do ano, feliz 2024 para todos! ✨
eu acho que foi um relato de uma mulher no twitter, falando sobre como não via mais suas amigas, mulheres de 30+, no Instagram. procurei muito esse relato, mas não encontrei — se você for a autora, por favor, me avise <3
depois dessa resposta, desativei meu Twitter pela primeira vez em 16 anos. me sinto extremamente animada! :)