Para ler ouvindo: Todo Dia - Pabllo Vittar ft Rico Dalasam
O ano era 2016. Havia me mudado para São Paulo há dois ou três meses, com 900 reais na conta e um sonho. Parece piada, mas foi assim mesmo. Já tinha um emprego (não seria tão louca a ponto de me mudar sem uma CLT assinada), mas não tinha casa, não sabia pegar metrô e nem tinha roupas que acompanhassem as oscilações meteorológicas da cidade. No meio dessa jornada de encontrar um apartamento com roomates decentes, de aprender para qual lado do trem sair e se era mais perto descer na Trianon ou na Brigadeiro, conheci o Carnaval.
Meu primeiro bloco foi um bloco ridiculamente hétero. Eu era loira, padrãozinha, não estava nem perto de adquirir a minha franja vegana e, ainda muito longe de ter o meu próprio barracão em casa, vesti apenas uma tiara de diabinha, um short jeans e um cropped. Foi básico, despretensioso e foi tudo. Beijei bocas aleatórias, dancei em público no meio da rua, cantei a plenos pulmões e absolutamente ninguém reparou. Não ouvi nenhum comentário no dia seguinte e não recebi nenhum olhar recriminatório depois, coisas que me aconteciam semanalmente no interior. Nada disso - todo mundo viveu sua própria bagunça e agiu como se eu não existisse. E aquilo, pra mim, foi libertador.
Passei a amar o Carnaval ali, por causa da sua liberdade. No fim de semana seguinte, fui com meus amigos em blocos lgbtqia+ e conheci outra linda vertente. Nesses, tocavam Anitta, Kylie Minogue, Lady Gaga e Beyoncé (como não?) e o glitter era mandatório. Se no bloco hétero ele era discreto, no das gays ele era onipresente e aquilo foi marcante pra mim porque o Carnaval conseguia nos destacar na invisibilidade. Chamávamos a atenção ao mesmo tempo em que passávamos despercebidos. Essa coisa meio poética, meio paradoxal, foi como uma flechada: eu estava totalmente entregue a ele. E aí, no ano seguinte, veio Ele: o Carnaval de 2017.
2017
Falar sobre o Carnaval de 2017 é ser arremessada para o meu quarto no primeiro apartamento que vivi em São Paulo, na Vila Mariana. Sinto um forte cheiro de Catuaba e de caipirinha feita com Velho Barreiro. Toca Chifrudo, da Lia Clark, ao fundo. Tem Skol Beats em algum lugar da minha estante e enquanto uma das minhas amigas veste seu body, a outra passa a chapinha na franja. Quatro amigas fizeram parte desse meu bloco e nos arrumávamos felizes enquanto gritávamos que não precisávamos do carnaval para sermos vadias. Foi catártico. Depois de vestidas, encontramos com mais dois amigos no metrô e, então, começamos o que foi, pra mim, o Melhor Carnaval da Minha Vida.
Nesse Carnaval eu fiquei fora de mim. Não usei nada ilícito, mas bebi tudo o que era possível beber. Foi a vez que mais bebi na vida, inclusive. Vi minhas amigas perderem todos os limites. Teve amiga pegando amiga. Amiga vivendo história de amor no centro de São Paulo. Amiga se perdendo, amiga tirando a roupa, amiga chorando. Fui furtada no cordão do Tarado Ni Você. Tirei a roupa (nunca imaginei sair de lingerie para qualquer lugar além do meu quarto, mas no Carnaval era uma fantasia, afinal), tirei foto com estranhos. Vi a Gretchen. Vi a Rita Cadilac na mesma festa que eu. Dei selinho na Jana Rosa. Levei meu primeiro fora e fiquei deprimida. Chorei no metrô. Me apaixonei no Explode Coração. Vivi eu mesma uma história de amor no centro. Rasguei meia. Troquei fantasia. Me fantasiei de Tartaruga Ninja. Meu Deus, foi incrível.
Vivi os Carnavais dos anos seguintes, até 2020, mas nenhum outro foi tão bom como o de 2017 porque aquele tempo tinha passado não só para mim, mas para cada uma dessas minhas amigas que protagonizaram essa que é uma das minhas memórias favoritas da vida. Nunca mais consegui reunir essas mesmas quatro amigas em um quarto caótico, não somos mais tão próximas, duas delas também são mães e casadas e nunca mais meu estômago conseguiu receber doses de Catuaba sem protestar veementemente. A vida é assim, acontece, mas é por isso que o Carnaval hoje representa uma certa melancolia pra mim: porque ele me remete a uma felicidade diferente, que eu nunca tinha experienciado antes, enquanto me lembra de eu nunca mais vou viver aquilo de novo.
Eu nunca mais vou ter 25 anos.
Nos anos seguintes, eu tentei reproduzir a euforia desse Carnaval, mas nada chegou nem perto. Vivi aquela cena de Annie Hall em que o Woody Allen tenta reviver a cena das lagostas com a nova namorada e vê que nada ali tem graça porque o motivo daquela memória ser especial não era a situação, mas a pessoa que estava nela.
Logo, a muvuca que antes me enebriava, me deixava aflita. O glitter que eu tanto amava me incomodava, irritava. As fantasias divertidas viravam só mais um pretexto para pagar look no Instagram - muitas vezes, me vestia, tirava a foto e já queria desistir, porque o combo cerveja de manhã, sol quente e gente me encostando não fazia mais sentido. Fui percebendo que o Carnaval, outrora tão importante e irresistível, passou a ser aversivo pra mim num nível em que eu ia nos blocos apenas para renovar a minha imagem e personalidade de alguém que o amava. Meu último bloco foi logo antes da pandemia estourar e, desde então, nunca mais.
Hoje fico quase aliviada em não precisar sair atrás do trio elétrico, não precisar mostrar o quanto eu estou me divertindo, mas rola uma melancolia, sim. Não pela festa. Mas por quem eu era naquela época, sabe? Eu tinha a inocência e a ousadia de acreditar que o mundo inteiro era servido de bandeja pra mim. Tinha acabado de me mudar, não precisava dar satisfação a ninguém, estava descobrindo minha sexualidade, meus limites, vivendo toda a efervescência da juventude. Eu tinha 25 anos, minhas amigas eram solteiras e naquele momento estávamos todas na mesmíssima página da vida. Esse alinhamento e essa sintonia entre todas nós nunca mais se repetiu com aquela sincronicidade e talvez por isso, o Carnaval me deixe meio pra baixo: porque me mostra que crescer é ir dizendo adeus às coisas, mesmo.
Existir é isso, pensei, um sobressalto de alegria, uma pontada de dor, um prazer intenso, veias que pulsam sob a pele, não há mais nada de verdadeiro para contar. — Elena Ferrante, Dias de Abandono
Falando nisso…
📺 Todo mundo já viu essa entrevista no Twitter (quando eu ainda tinha Twitter), mas aqui, Fernanda Torres traz uma fala que sintetiza muito do que sinto quando penso:
"A idade é uma beleza. Você fica mais calmo, mais consequente, caga menos regra, tem menos certeza das coisas. (...) Desde os anos 60 há esse culto ao jovem. Essa ideia de que a juventude sempre nos trará algo novo e revolucionário. Isso é da juventude. Mas, ao mesmo tempo, a juventude fala muita bobagem. A juventude é muito cansativa, senhora do que acha, sem saber metade das coisas."
✍🏽 Quem me lembrou dessa fala foi a
, com a edição “O tempo andou mexendo com a gente", da newsletter Uma Palavra. Está incrível.👩🏻 Essa edição da newsletter da
fala sobre sua concepção de se tornar adulta. Como sempre, ela discorre sobre o tema com um texto afiado, muito bem embasado e que nos abraça no final.🤎 Esse meu texto aqui fala sobre as pessoas que ficam para trás na nossa vida. Sempre volto pra ele quando preciso me lembrar de que não são só as pessoas que nos deixam, mas que vamos embora também.
Eu estou…
Lendo: Depois de um janeiro extremamente prolífico com livros muito bons, agora estou lendo Segredos, um livro chatíssimo do Domênico Starnoni porque eu comprei ele achando ser o Laços (que já terminei). Também estou lendo o Segredos de uma força sobre-humana, mas bem leve, no meu ritmo.
Vendo: Estou vendo The Curse com muita lentidão, infelizmente. Amo Nathan Fielder, adoro Ben Safdie e sou apaixonada por Emma Stone, logo, tem tudo o que eu adoro. Ainda não engatei por pura preguiça, já que chega à noite e ou eu preciso trabalhar o que não consegui trabalhar durante o dia (aiai a maternidade) ou eu estou cansada demais para prestar atenção em qualquer coisa. Mas, sem surpresas, é muito boa, de um humor que eu adoro e uma direção primorosa - além de ser da A24. Está disponível no Paramount+
Além disso, estou vivendo um pequeno caos (ainda e de novo) com a mudança. Minha vida está toda distribuída em caixas e malas, empacotei minhas principais lembranças desses quase 10 anos de São Paulo e as guardei em um contêiner alugado no bairro da Aclimação. Ainda sobre a vida, sigo fora do Twitter e não tentei me consolar com o Bluesky ou qualquer outro. Não por acaso, li 8 livros em janeiro. Pretendo continuar longe dele. Vamos ver.
Volto com novidades.
Com amor,
Michele
Esse texto me causou muita saudade.