Sobre a falácia do "amor da vida e amor pra vida"
Eu juro que essa edição não é sobre Justin Bieber e Selena Gomez, mas vai parecer que tô mentindo
“Uma coisa é a pessoa amada, outra é a pessoa real que, enquanto a amamos, nunca vemos realmente” — Domenico Starnone, Segredos.
Meu algoritmo do TikTok é uma coisa maravilhosa. Entre reviews de maquiagens que eu nunca vou comprar, fitchecks deslumbrantes, edits de séries dos anos 2000, lives de namoro e esposas de homens presos, sou muito impactada por fofocas do pop, principalmente por brigas de fandom. Eu paro para ver todas e, por isso, eu sei mais do que eu gostaria sobre o embate entre fãs da Selena Gomez versus fãs da Hailey Bieber. Por mais que o relacionamento do Justin Bieber e da Selena tenha acabado há 12 anos anos e que o último revival dos dois tenha sido há 6, os fãs do casal Jelena se apegaram a uma teoria(!) de que “existe o amor da vida e o amor para vida”. Sendo assim, Selena seria o amor da vida do Justin, enquanto Hailey seria o amor para a vida. E eu fiquei me coçando para falar sobre isso.
A teoria(!) é exatamente essa: você tem dois amores em sua vida inteira, um é o amor que você queria pra sempre, mas que não deu certo. E o outro é o amor que, bem, você encontrou quando a vida seguiu, e ele acabou sendo o seu “amor para a vida”. Eu acho isso quase engraçado. Quer dizer, quando são adolescentes dizendo isso, até soa bonitinho. É natural que você, no auge dos seus 16 anos, acredite em almas gêmeas, um só amor, se casar com o namorado da escola e etc etc etc. Mas quando são pessoas adultas falando esse tipo de coisa, eu fico triste e revoltada na mesma proporção, porque nada disso faz o menor sentido. E para falar com a devida propriedade, fui vasculhar meu museu pessoal na internet e relembrar o meu primeiro amor.
O ano era 2008. Eu tinha 16 anos (há 16 anos atrás!), tinha beijado um total de 3 bocas na minha vida. Não saía de casa, não tinha traquejo social algum, e o auge da minha existência era quando minha mãe me deixava dormir na casa da minha amiga Hiandra. Como eu eu vivia online e só sabia interagir com outros seres humanos pelo computador, foi quase que natural que o meu primeiro amor tenha acontecido no Orkut.
A história foi mais ou menos assim: um amigo do Victor, meu primeiro namorado, me viu em uma comunidade aleatória e mandou meu perfil pra ele no MSN dizendo: "olha que menina bonita!". Sim, aleatório desse jeito. Lembro até hoje que foto era essa: aparecia só metade do meu rosto, parcialmente coberto por uma franja, e eu estava na frente do sofá amarelo da casa da minha amiga Juliana. Victor abriu meu perfil e sua visita ficou registrada no meu “Visitantes Recentes” do dia seguinte. Debochada, mandei um scrap (um recado): "volte sempre". Ele respondeu minutos depois: "vou voltar".
E aí pronto. Trocamos MSN e passamos a nos falar todos os dias. Na época, eu ainda não tinha banda larga (internet ilimitada e que não usava a linha telefônica), então nos falávamos em horários específicos: depois da meia noite em dias de semana, sábados depois das 14h e o dia todo em domingos e feriados. Eu precisava negociar com a minha irmã para ficar um pouquinho mais online antes dela assumir o computador para jogar jogos da Barbie. Era tudo muito limitado, mas era incrível porque era também muito inocente e verdadeiro.
O "webnamoro" antes de 2010 era muito diferente de como é hoje: quase nunca nos falávamos por vídeo porque demandava uma webcam e nem todo mundo tinha uma, e nem sempre estávamos online ao mesmo tempo. Mesmo assim, conseguimos nos apaixonar. Victor me mandava cartas com desenhos que ele fazia nas aulas de artes. Eu mandava cartas nos meus sagrados papéis coloridos, trocados com as colegas de sala. Victor me mandava músicas no MSN em formato .mp3. Eu mandava livros traduzidos no Word, baixados de blogs suspeitos. Victor me mandava emoticons engraçados, geralmente com o rosto do Will Smith e uma frase iniciada por uma barra. Eu mandava links de fanfics. Victor me contou que iria me visitar em Araçatuba, no fim do ano. Eu quase morri.
"Juntei um ano de dinheiro do lanche e comprei as passagens", ele me disse assim, simplesmente.
Não existe descrição para o que eu senti naquele dia. Era uma euforia que eu nunca tinha sentido antes. Uma mistura de realização de sonho, com felicidade extrema, com medo e com saudade e com ansiedade e— enfim. Lembro de quase tudo desse primeiro encontro. Lembro que eu estava morrendo de ansiedade na rodoviária às 6 da manhã. Lembro que estava meio frio, para os padrões de Araçatuba. Lembro do ônibus chegando. Lembro de cada uma das pessoas que saíram e não eram ele. Lembro do All Star amarelo. Lembro de vê-lo e meu coração parar por uns nanossegundos. Mais alto do que eu esperava, mais branco do que aparentava, mais próximo do que imaginei. Acho que eu senti o que as pessoas que participam do Casamento às Cegas se sentem, porque apesar de já ter visto fotos dele, elas não faziam jus à pessoa que ele era naquele momento. E como vocês já perceberam pelas minhas, a gente não tirava boas fotos. Tudo o que eu conseguia pensar era: ele existe mesmo.
Apesar desse namoro ter durado apenas 3 meses, foi mesmo uma história linda, principalmente se levarmos em consideração o fato de que eu tinha 16 anos, nenhuma outra experiência romântica além dos livros, e uma personalidade baseada em bandas emo, Harry Potter e jogar RPG no intervalo da escol. A única coisa que eu tenho em comum hoje com a pessoa que eu era em 2009 é ouvir My Chemical Romance e escrever ficção. Sendo assim… como poderia esse amor, vivido aos 16, ser o “amor da minha vida”? Um amor que aconteceu quando eu ainda não tinha o cérebro completamente formado? Quando eu era uma pessoa completamente diferente da que sou hoje e não sabia nada do mundo? Não faz sentido, né? E sabe quem também tinha 16 anos quando teve seu primeiro amor?
O Justin Bieber.
Primeiros amores marcam, é óbvio. Além de ser a primeira vez que seu cérebro recebe um número bizarro de substâncias, você é adolescente e está fervendo em hormônios. Se até hoje confundimos amor com tesão, imagine na adolescência, quando não tínhamos 10% da experiência que temos hoje? Eu entendo essa fantasia toda, ainda mais considerando que ela nos acompanha desde a infância. Veja bem, a Aurora não foi se esgueirar pelo bosque com uns camponeses antes de falar “ok, eu definitivamente tenho uma coisa com homens que dançam!” e a Branca de Neve não experiencou um relacionamento não-mono com os sete anões antes de viver feliz para sempre com o outro Príncipe. Todas essas histórias com as quais nos evangelizaram desde os 4 anos de idade nos disseram que é o primeiro amor o mais importante e que se você tiver a sorte de se casar com ele, você viverá um conto de fadas.
E que isso, esse conto de fadas, é a meta.
Com essa narrativa, um mimo oferecido pelo patriarcado, cada término de namoro parece uma falha, uma chance a menos de alcançar o tão prometido felizes para sempre. Mas ainda assim, nos dizem que é preciso continuar tentando, afinal, “todo mundo precisa de alguém”. Então, qual é a justificativa para essa busca por um amor-romântico, mesmo que ele não seja de conto de fadas? Mesmo que você já tenha vivido amores intensos que “não deram certo” (como se houvesse um número pré-determinado de vezes que você pode se apaixonar na vida)?
A resposta é a ideia de que existe um amor para a vida. Tcharammm!
Nessa teoria(!), o amor para sua vida sai do campo idealizado e romântico e entra no campo funcional. Não à toa que ele é PARA sua vida. Esse relacionamento já vem em uma roupagem que te poupa de “escolher demais” porque ele não vai ser o amor da sua vida, de qualquer forma. Ele aparece como uma escolha racional, que vai te fazer bem, te fazer crescer e, eventualmente, até te fazer feliz. Não é que você amadureceu e entendeu que nenhuma pessoa no mundo vai atender 100% das suas exigências, que só você é responsável pela sua felicidade ou que ninguém é perfeito — é porque o amor, aquele da sua vida, se perdeu no timing e agora é hora de se contentar com o amor funcional, para vida. Sinto muito, Hailey Bieber.
Gostaria de dizer que me contive e não comentei nenhum post sobre essa palhaçada no TikTok. Mas, se não fosse o limite de caracteres, eu provavelmente teria deixado este texto inteiro na íntegra. Sendo obrigada a me limitar em apenas 120 letras, respondi: vocês precisam crescer. Acreditar nisso é virar as costas para seu próprio amadurecimento e presumir que as pessoas permanecem as mesmas de décadas atrás. É se agarrar a uma história que só fazia sentido naquela época, antes de termos o córtex pré-frontal desenvolvido, senso crítico e carteira assinada.
Eu entendo que quem acredita nessa fanfic de Selena e Justin (ainda, por deus) era adolescente na época e hoje precisa se apegar a essa história para enxergar um pouco de romantismo nos dias atuais. Mas, sinto em ser a portadora da má notícia: esse amor aí só existe nos contos de fadas. E mesmo neles, já não faz mais sentido, uma vez que as histórias mais recentes não só abandonaram a ideia de "felizes para sempre" como até a ridicularizaram. Deus nos livre de casar com alguém antes de experimentar coisas, descobrir o que amamos, o que detestamos, o que é negociável e o que não é. A coisa mais bonita da vida é se reinventar quantas vezes for preciso e poder amar diferentes pessoas em cada uma dessas vezes. É claro que histórias de amores de infância e romances de 256 anos vão continuar inspirando — da mesma forma que acho lindo quem encontrou o “amor da vida” aos 72.
Eu não sei vocês, mas eu vivo muitas vidas em uma só e, ao longo delas, descobri duas coisas. A primeira é que o único amor da minha vida sou eu mesma. Eu sei, parece coisa de coach, mas é verdade: a única pessoa que vai permanecer, não importa o que aconteça, e que tem obrigação a cumprir com as minhas expectativas sou eu mesma. A segunda é que, uma vez constatado isso, ficou bem mais fácil seguir feliz com o meu amor para todas as minhas vidas e entender que contos de fadas não existem. E que a realidade, mesmo imperfeita, é muito melhor qualquer história que nos foi contada ao longo dos anos. Recomendo viver nela.
PS 1: Eu não sou fã do casal, não acompanho nada além das fofocas do TikTok, e não sou uma seguidora fiel da Hailey e do Justin. Toda a ideia para esse post começou quando fiquei triste porque Blair não terminou com Dan em Gossip Girl. Sim, minha cabeça funciona assim.
PS 2: Só para concluir: Justin e Hailey estão juntos há mais tempo do que ele ficou com Selena — mesmo com as idas e vindas. Pelo amor de Deus, SUPEREM. Eu ia me 🦞 se estivesse casada, feliz, com filhos, e um bando de desocupados ficasse fazendo edits meus com meu ex de 15 anos atrás, dizendo que ele era "o amor da minha vida."
Eu estou…
Lendo: Estou lendo o Querido Babaca, da Virginie Despentes. Ela é autora do ótimo Teoria King Kong e, como peguei pra ler para uma pesquisa, decidi ler essa sua ficção. Estou gostando - gosto da acidez da Virginie e como ela é genial em trazer luz para temas e pessoas que estão sempre nas sombras -, mas não me sinto realmente pega por ele. Nos últimos tempos, li também o ótimo Lutas e metamorfoses de uma mulher, do Édouard Louis, o que acabou também influenciando na minha escolha para continuar na literatura francesa.
Vendo: A última temporada de My Brilliant Friend. Demorei muito para me adaptar à nova Lenu, enquanto a atriz que faz a Lila é um acontecimento. Até agora, quase no final da série, fico boba em como ela se parece com a primeira atriz e como reproduz todos os trejeitos da mesma. A segunda Lenu, entretanto, ainda me parece uma pessoa diferente, mas aprendi a gostar. Enfim, é uma pena que a série esteja acabando porque, tal como nos livros, é difícil dar adeus a Elena Ferrante.
→ Também estou vendo a terceira temporada de The Bear e não entendi porque todo mundo falou mal. Estou achando ela linda, muito bem construída e coerente. Cheguei na metade e já a considero melhor que a anterior.
Antes de fechar, dois últimos recadinhos!
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Obrigada por ler até aqui.
Nos vemos logo menos :)
Texto excelente, Mi! Obrigada por colocar em palavras o que eu penso, quando alguém tocar neste assunto perto de mim, vou enviar a sua news. Rs
Por que não conseguimos superar grandes momentos do pop 2000/2010 e nos apegamos a ele como se apegassemos a uma versão mais jovem de nós mesmos?
Ps: Já estou colocando alguns dos livros do Édouard Louis também na minha lista, acho que vou começar pelo "quem matou meu pai".