f rag m e ntos #7
Pela primeira vez em dois anos, peguei um metrô e comecei a desbravar minha cidade
Olá! Muita gente nova chegou por aqui e acho que vale eu me apresentar rapidinho! Meu nome é Michele Contel, sou escritora e redatora publicitária que escrevo na internet desde os meus 11 anos. Aqui no Sobre Todas As Coisas eu faço ensaios, listas e textos como esse aqui, que é basicamente um diário e um convite a fazer parte de alguns dos meus dias. Espero que gostem!
É meio assustador pensar que já faz um ano e meio que eu vivo no Canadá. Tudo passou voando e ainda me pego chocada quando vejo as prateleiras, compradas no ano passado, ainda esperando para serem instaladas. É uma sensação confusa: é minha casa, mas ainda não é, como já falei algumas vezes.
Bom, agora com as definições de cidade mais claras para essa imigrante que vos fala, aprendi que vivo em Delta. Tsawwassen é como se fosse um dos três bairros que compõem o município. Da minha casa, estou a 10 minutos de Point Roberts, nos EUA, 20 minutos de Vancouver e 40 minutos de downtown, que é o centro. Eu sei, não faz muito sentido, mas é que Point Roberts é literalmente isso aqui:
Como Delta é uma cidade de interior, aqui tudo precisa ser feito de carro, o que me desanima muito a fazer qualquer outra coisa que não seja deixar a Maria na escola, trabalhar de casa e buscá-la de volta. Embora eu esteja tentando dirigir por caminhos curtos, enquanto meu marido me ajuda a perder o receio do volante, a verdade é que não dirijo. Primeiro, porque meu marido é ansioso e me apavora - logo perco a coragem e volto para o banco do carona. Segundo, porque não me sinto segura em ter que checar o GPS o tempo todo. Sempre tive dificuldade em decorar caminhos e, aqui, isso parece ainda mais complicado, já que todas as casas são praticamente iguais.
O tempo passa rápido depois que você tem filhos e, quando vi, já estava há mais de um ano nessa mesma dinâmica que tanto me deixa apática. Acordo, arrumo a Maria, João faz a lancheira, deixamos ela na escola, voltamos, trabalhamos, às vezes pulo o almoço, buscamos Maria na escola, brincamos, fazemos o jantar, damos banho, coloco pra dormir, assisto à novela, durmo. Poucas vezes algo sai dessa rotina e viver desse jeito coreografado faz parecer que todos os dias são os mesmos. Quando você menos espera, mal acabou o ovo de Páscoa e as prateleiras já estão abarrotadas com decoração de Halloween.
A depressão voltou a dar as caras e percebi que a culpa era minha. Acontece, sabe? Às vezes a gente tem uns lapsos de autoresponsabilidade e consegue enxergar que os erros são nossos, então, decidi que faria algo dentro das minhas possibilidades. Comecei com caminhadas pelo meu bairro. Ainda incapaz de ser uma flâneuse, uma vez que minha cabeça tem barulho demais, baixei novamente o Audible e escolhi um livro. Coloquei meus tênis e fui andar ao redor do parque aqui do lado. Levou uns 20 minutos de trajeto, mas minhas pernas ficaram vermelhas e minha nuca suou. Era de se alarmar, mas consegui ver o lado bom. Estava voltando a me movimentar.
Outro dia, quis ir além e peguei um metrô. Quer dizer, ainda precisei depender do meu marido para ele me deixar na estação mais próxima, que é em Richmond, mas ainda assim, comemorei essa quase independência. Comprei os tickets de um jeito destrambelhado, contando as infinitas moedas que eu levo na carteira - e até agora não entendi exatamente a dinâmica da validade da passagem - mas retirei meu cartãozinho de papelão e entrei na estação. Nunca pensei que fosse dizer isso na minha vida, mas nossa, que saudade de uma estação de metrô. Ver pessoas diferentes das que estou acostumada, ouvir diferentes idiomas a poucos centímetros de distância, observar as roupas e como cada pessoa se veste, inventar histórias para cada personagem que cruzava meu olhar, tecendo narrativas silenciosas; fazer aquela dança que eu, versada em Linha Azul, sei de cor, e conseguir me equilibrar mesmo no maior sacolejo do trem; tentar entender a informação que sai da caixa de som; errar a estação e ter que pegar o trem de novo... Foi como voltar para um momento que era só meu.
Nesse primeiro dia, fui até Yaletown. Uma espécie de Pinheiros, de Vancouver. Estúdios de Pilates, cafés superfaturados e lugares instagramáveis preenchem os prédios de tijolinhos marrons. Mulheres lindas com suas roupas de academia que custam algumas centenas de dólares desfilam com seus machas em uma mão e seus celulares com penduricalhos na outra. Algumas pessoas trabalham nos bancos públicos, protegidos por guarda-sóis, com seus laptops de um lado e as bebidas rotuladas por algum dos cafés dos arredores do outro. Alguns cachorros coexistem nesse ambiente de pessoas jovens, bonitas e sem grandes preocupações.
Peguei um desses cafés, escolhi algo para comer e me sentei no sofázinho da cafeteria, para uma última reunião antes de poder caminhar sem grandes preocupações. Enquanto aguardava o horário, assisti um pouco da Lorelive e percebi a dinamarquesa do meu lado espiando minha tela. Era aquela parte onde a Lorelay vai virando uma outra pessoa e, bem naquele dia, ela se transformava em um Pikachu. Não consegui segurar o riso. A dinamarquesa conseguiu, mas tenho certeza que não foi fácil.
Depois, fui andando até a biblioteca pública da cidade. Eu frequento bastante as bibliotecas aqui de Delta, tanto a de Ladner quanto a de Tsawwassen, mas majoritariamente por causa da Maria. Sempre pegamos livros para ela e lemos alguns por lá. Dessa vez, sozinha, pude desbravar a maior biblioteca da cidade e fiquei feliz em ver uma seção inteira de livros de em português. A curadoria era a mais variada possível, tinha de Paulo Gustavo a José Saramago. Autores brasileiros contemporâneos, porém, nada. A maioria dos títulos eram best-sellers americanos traduzidos. Ainda assim, fiquei feliz.
Subi alguns lances de escadas e me sentei em uma das mesas individuais para trabalho, no quarto andar. Era confortável, com boa iluminação e em um silêncio delicioso, não daqueles intimidadores, onde você fica neurótica com os barulhos do seu estômago, mas aquele silêncio bom, que dá vontade de fazer coisas. Existem tantos tipos de silêncio, né? Depois da maternidade, aprendi a valorizar cada um deles. Bem, uma vez posicionada, fui dar uma olhada nas prateleiras de livros que ficavam ali do lado e tive o prazer de pegar algumas edições da New Yorker. Não fiz mais que folheá-las, mas ainda assim, me senti feliz em tocá-las e colocá-las em minha mesa.
Confesso que, quando dei por mim, fiquei triste quando vi a hora. Para chegar na estação de Richmond a tempo de buscar Maria na escola, precisava me agilizar e interromper meu momento na Vancouver Public Library. Comi uma salada no Matchstick e peguei meu caminho de volta enquanto lia Caderno Proibido, da Alba de Céspedes, no Kindle. No livro, Valéria, a narradora, busca por cada momentozinho de solitude para poder se entregar ao caderno. Vive seus dias ansiando pelos minutos em que poderá se sentar e jorrar suas palavras nas folhas em branco. Achei simbólico, de certo modo. Depois de tanto tempo vivendo uma vida coletiva, composta por minha filha, meu marido e a dinâmica da minha casa, foi a primeira vez que existi só para mim no Canadá. Percebi que, talvez, o meu problema não seja com o país, mas com a dificuldade que é ter um silêncio para chamar de meu.
Amanhã volto para downtown. Já penso na roupa que vou usar, como se fosse um grande encontro. Se for pensar, não deixa de ser.











que dia gostoso!♥️
Que texto gostoso de ser lido!